Catar certos restos é muito enriquecedor. Para além da história oficial, da história de heróis, da história dos fatos excepcionais, existe ...

Conto: “As entranhas dos sacrificados ou clavis prophetarum”


Catar certos restos é muito enriquecedor. Para além da história oficial, da história de heróis, da história dos fatos excepcionais, existe a história das misérias humanas, do dia-a-dia. Esta história do cotidiano, da vida privada está em evidência desde alguns anos e tem origem na França. Se para a ciência histórica é fundamental estudar as grandes linhas, os processos de longa duração, também os fenômenos históricos de menor intensidade e acontecidos mais recentemente devem ser objeto de profícuas análises. Só assim poderemos juntar uma ponta a outra e fazer, por exemplo, a petite histoire dos movimentos sociais.

Em relação aos eventos mais recentes talvez não se tenha acesso a documentos com registro convencional (correspondências, ofícios). Mas aí estão as fotos, depoimentos de participantes, filmes, gravações, recortes de jornal. Os suportes físicos agora são outros e precisam também ser preservados para utilização no presente e ser objeto de futuras abordagens. Na elaboração deste texto foram “consultados” documentos comuns (como atas) e outros de emprego mais raro em pesquisas, como rascunhos e anotações particulares. Sem este negócio de dizer que “o telefone é o grande ladrão da história” (como queriam alguns historiadores de décadas atrás). Sempre sobrarão telex, fax, fitas, microfilmes, listagens e o depoimento das pessoas para se conhecer o passado. E sempre restará a ficção. Já é muito antigo o uso, na reconstituição histórica, da ficção existente e mesmo, como no presente texto, de se fazer ficção para utilização de outrem. Sem imaginação não existe história.


I

Movimento estudantil ou ad usum delphini


Para se falar sobre movimento estudantil em nossa capital pode-se começar e terminar reproduzindo trechos do discurso proferido pelo padre diretor do Colégio Salesiano na formatura do curso ginasial em 1964. Por ser formando daquele ano ganhei e guardei uma cópia do discurso.

“Minhas senhoras, meus senhores, queridas famílias, caríssimos alunos.

[…] Lembro agora as palavras de um pai de aluno quando me falou orgulhoso: ‘— Meu filho recebeu tantas medalhas que parecia o marechal Zhukov, herói russo da Segunda Guerra Mundial.’ Na verdade quem merece todas as medalhas colocadas nos peitos de vossos filhos são vós, pais e mães aqui presentes, que acompanharam a trajetória dos nossos alunos estes anos todos. […] Somos vizinhos do Colégio Estadual do Espírito Santo, tradicional instituição de ensino desta terra, mas dele nos diferenciamos por ministrar educação religiosa. Lá existe a Uages — União dos Alunos do Ginásio do Espírito Santo. Aqui oferecemos aos alunos os mais sadios princípios da moral cristã. […] Que adiantam protestos, passeatas, este perturbar constante que agora nos anos 60 é moda se chamar de ‘movimento estudantil’ sob o pretexto de que serão conseguidas novas conquistas? Vitória é uma das poucas cidades do Brasil, se não a única, onde os estudantes gozam deste privilégio de passe escolar e meia-entrada nos espetáculos e diversões públicas. Não se diga que isto é uma grande conquista! Assistir toda hora televisão há pouco disponível entre nós, ou se enfurnar em cinemas a pretexto de pagar entradas mais baratas não irá conduzir ninguém a bons caminhos de conduta moral ou mesmo profissional. […] Pesa sobre o ombro de vós, jovens estudantes, o preparo para novos desafios que a Universidade, recentemente tornada federal, vos apresentará. Estes desafios não serão vencidos com as arruaças e festas dançantes promovidas pelos centros acadêmicos, mas nos bancos universitários e nos estudos continuados. […] O Céu para vós, caros formandos, está melhor colocado e mais alto do que um CEU (Casa do Estudante Universitário) que existia nesta capital e que prestou um desserviço a muitos rapazes vindos do interior; CEU felizmente acabado com a Revolução de Março que no presente ano colocou as coisas novamente nos eixos em nossa pátria. Perseverai fazendo periodicamente exame de consciência e um bom retiro, como aqueles freqüentados por muitos de vós em nosso Seminário de Jaciguá. […] Na oportunidade em que me despeço deste colégio e desta cidade, auguro aos formandos e prezadas famílias os votos de muitas felicidades e um Católico e Santo Natal acompanhado de Próspero e Feliz Ano Novo”.


II

Movimentos religiosos ou caritas nunquam excedit


Algum tempo atrás fiz amizade com um velho professor, que terminou seus dias em confortável casa na Praia da Costa assistido por familiares. Depois dele morto, e por especial deferência de contraparentes comuns, tive acesso a anotações suas que considero um tipo de poema em prosa. Desse caderno, que está a merecer publicação esmerada, extraí estas palavras:

“Peço sua mercê para contar a Misericórdia. Havia uma Casa. Santa mil vezes Santa. E praticava a Caridade. Segunda do Brasil. Mais antiga só a de Santos.

Misericórdia
Mercedes
Mercês
Mercy
Merci

Começa em Vila Velha. Em Vitória continua. Vitória contínua.

Irmandade católica. De maçons depois.

Umas histórias são remorsos — Outras são celebrações — mesmo in pectore.

— S. C. Misericórdia — irmãs Vicentinas esvoaçantes anjos da guarda. ‘Serviam o chá da meia noite’, o povo contava. Eutanásia antiga? Metabolismo mais baixo, mais óbitos noturnos? […].

— Movimentos caritativos católicos — acompanham a transição do povo colonial e súdito para o das massas cidadãs no século XX.

ondas são são ondas
de caridade
são ondas ondas são
de caridade
são movimentos sísmicos
brotam do chão
sem se fazer esperar
derrubam tudo
tudo constroem
vão junto com o povo
salvar o povo do povo
constatar
só o povo salva o povo.
Arcebispo D. João, príncipe da Igreja.
D. João plebeu do ecúmeno capixaba.

— Procissões, irmandades religiosas — Por que tantas igrejas em Ouro Preto e Salvador, perguntam meus alunos, e lhes respondo perguntando: porque tantos clubes de futebol e os IAPETC, IAPI, IAPFESP, IPASE etc? São os mesmos cuidados na vida e na morte, naquele tempo e nos de agora, sempre exigências da vida. Os vivos têm sempre razão. […].

— A caridade espírita — espalhada em muitos lugares, amparando crianças e velhos. Eles sabem que os espíritos podem esperar, mas a carne nem sempre. Centros espíritas usando o espírito dos mortos para consolar o espírito dos vivos. Canabibi em Fradinhos. Fé, Esperança e Caridade Santa Cruz no Horto Agrícola — onde se ouvem bonitas rezas e exortações: Salve Jesus! Salve umbanda iluminada! Salve todos os caboclos! Salve Jesuuuuussss!!!!!!! […].

— O líder da Comunidade Batista de Vitória, mister Loren Reno e Arnulpho Mattos, católico fervoroso, se davam bem, bem antes do Concílio Vaticano II. […].


III

Movimento sindical ou non ducor duco ou vox populi vox dei


A importância do movimento sindical na história da cidade é inegável. Obtive de antigo militante sindical fotocópias de algumas atas de reuniões organizadas com a participação de diversos sindicatos para congregar as lutas por melhores condições de trabalho. Copio abaixo trechos de uma reunião acontecida em 14 de agosto de 1985 no auditório do Sindicato dos Arrumadores, Portuários Avulsos, Consertadores de Carga e Trabalhadores na Movimentação de Mercadorias em Geral, mais conhecido como Sindicato dos Portuários.

“[…] O companheiro representante do Sindicato dos Metalúrgicos pede a palavra e diz que o nome pelego vem de um modo de falar usado no sul do país que é como se chama o couro do carneiro com a lã, uma pele que os cavaleiros colocam entre a sela e a garupa do cavalo de modo a evitar ferimentos e maltratos [sic] no animal. E que se o termo virou xingamento depois é outra história. Continua dizendo que nosso papel de sindicalistas nunca é ser pelego, mas a lança enfiada na garganta do patrão. […] Recorda que em 1961 ou 62, na inauguração de uma expansão da Ferro e Aço, esteve presente o presidente João Belchior Marques Goulart, mas que não tinha estado com ele, mas comido de um bom churrasco, e feito por gaúchos vestidos a caráter, trazidos especialmente para a festança em época que churrasco era mais raro e só dominado pelos gaúchos, que dominaram também o começo da política trabalhista, com Getúlio, Jango e Brizola. Finaliza dizendo que ele também é gaúcho de Santo Ângelo mas se encontra trabalhando e atuando nesta cidade há mais de trinta anos. Com a palavra, o diretor social do Sindicato dos Estivadores, Conferentes e Trabalhadores em Estiva de Minério do Estado do Espírito Santo considera, já que o companheiro metalúrgico entrou numa de hora da saudade, irá recordar também, não um churrasco, mas maus momentos que passou no dia que arrebantou [sic] o dito golpe de 64. Naquela época ficavam encostados junto dos armazéns do porto pelo lado da avenida Getúlio Vargas vários canos de ferro muito grossos que estavam sendo enterrados para aumentar o volume do abastecimento d’água de Vitória. Prossegue o companheiro contando que quando sobe do golpe militar incentivou seus camaradas e com eles foi para a rua e rolaram os canos pela Getúlio Vargas afora de modo a impedir a passagem dos carros. Não demorou muito e a Polícia Militar chegou baixando o pau sem dó nem piedade no lombo dos trabalhadores da estiva. Ainda com a palavra diz que nunca poderá esquecer a cor cáqui dos uniformes dos policiais e seus longos cassetetes de madeira que maltrataram muito o povo trabalhador, inclusive com o incentivo de parte dos populares e de burgueses com seus carrões novos, fazendo com que rolássemos de novo os enormes canos para seus lugares encostados aos armazéns para desatravancar o trânsito. […] Tomando a palavra o companheiro e correligionário fundador do Sindicato dos Motoristas diz que os patrões são unidos no atacado e que lutam por seus interesses pessoais no varejo e que nós trabalhadores somos o contrário, unidos por pequenos interesses, às vezes de fome, embora este seja um grande interesse de todos, e desunidos no atacado no que interessa às grandes questões que atingem o povo trabalhador. Continua dizendo ser de um sindicato em que seus membros sabem que na vida tudo é passageiro, menos eles que são motoristas e trocadores. […] Naquele referido dia 1º de abril de 1964 os proprietários de empresas de ônibus trouxeram o povo para o centro de Vitória e depois mandaram recolher os ônibus para as garagens, com medo de quebra-quebra, mas também para prejudicar os trabalhadores que não puderam retornar com facilidade a suas casa ou se movimentar para a defesa de seus direitos. […] Após rápido debate e com a condição de que não se fizesse propaganda de partido político foi dada a palavra ao companheiro de um partido de oposição que deu toda razão aos discursos precedentes e falou que o objetivo de nossa reunião é nos unirmos para conquistar novas vitórias nesta Vitória tão querida de todos. Recorda que realmente os patrões sempre vivem unidos, vejam a Associação Comercial de Vitória, que existe desde o início do século, assim como o Centro de Comércio do Café e, mais novas e também atuantes, a Findes — Federação das Indústrias do Espírito Santo e a Federação da Agricultura. Continua dizendo que no Brasil os patrões possuem muitos sindicatos mais fortes que os dos operários e que alguns daqueles sindicatos são verdadeiros sindicatos do crime contra os interesses da classe trabalhadora. […] A interferência dos governos estadual e federal nos movimentos sociais reivindicatórios em nossa cidade sempre existiu, em especial na época das duas últimas ditaduras. […] E para constar eu, Wilson Augusto Talmaco de Oliveira, servindo de secretário ad hoc, fiz a presente ata que vai por mim assinada e por representantes dos seguintes sindicatos com sede em Vitória: dos Portuários, dos Estivadores, dos Motoristas, dos Comerciários, dos Alfaiates, dos Médicos, dos Tipógrafos, dos Bancários e dos Professores.”


IV

Os clubes ou primus inter pares ou tempus fugit


Tive acesso a um anteprojeto de pesquisa elaborado por professor da Ufes para se candidatar a uma bolsa de estudos em universidade inglesa. O trabalho foi depois desenvolvido pois irá servir de base a tese de doutorado. Naturalmente que não cabe reproduzir neste espaço todo o projeto do colega. Mas dele recebi autorização para (sem citar seu nome, já que o processo respectivo ainda está em tramitação nas instâncias burocráticas da Universidade) transcrever de forma resumida algumas partes do documento que considerar significativas, o que passo a fazer.

Objetivo geral: […] Objetivos específicos: […] Justificativa: […] O que despertou meu interesse por este tema foi uma ação banal. Ver inscrita em banheiro do Centro de Educação Física de nossa Universidade, como um desses famosos grafitos — alguns até espirituosos — a seguinte frase:

Mens insana in corpore incorpóreo […].

Introdução: […] Mais para frente nas minhas pesquisas com material bibliográfico e tomando como referência os trabalhos citados no final do item 5.2 pude concluir, com ajuda do orientador formal e apoio em consultorias por este último indicadas, em especial de professores da USP, que o presente estudo tem uma abordagem predominante de interesse social já que se trata de analisar fenômenos ligados a esportes de massa, que congregaram e congregam grande número de pessoas na cidade de Vitória, no atinente à prática esportiva propriamente dita e também no que se refere ao lazer moderno, fundamental para a qualidade de vida em nossa época. […].

4.1 — clubes com predominância de esporte: Rio Branco, Vitória, Caxias, Santa Cruz (em Santa Lúcia) — consultar trabalho de Álvaro José Silva sobre o tema.

4.2 — os esquecidos, desaparecidos ou menores: Victoria Golf Club (no atual Campus de Goiabeiras); o Clube Caiçara (em Santo Antônio); Clube Centenário (de quê?); o Anchietinha (em Fradinhos).

4.3 — os étnicos: Libanês (Vitória-Vila Velha); Ítalo-Brasileiro.

4.4 — os tradicionais (Com e sem esporte): Saldanha da Gama, Álvares Cabral (também étnico com este nome português?), Praia Tênis Clube, Náutico Brasil (étnico pela predominância de associados negros?), o ex-aristocrático Clube Vitória do ex-aristocrático Parque Moscoso, sic transit… […].

5.6 — […] a história das regatas em Vitória, sempre contada fragmentariamente. […].

6.6 — A questão da rolha: o privado no público. Os burgueses e suas famílias comprando uma mesa para determinada festa e pagando ao clube uma taxa (a rolha) para poderem levar de casa a boa bebida que podiam mandar vir importada de procedência conhecida e controlada. […].

6.9 Os clubes e grêmios sediados fora de Vitória, mas freqüentados por seus moradores e pertencentes a associação profissionais ou de entidades públicas, corporações de ofícios ou associações de pessoal de empresas.

Conclusão: […] sendo que um universitário definiu movimento social “como aquele feito pelas ancas da morena em manhã ensolarada de Camburi, a rapaziada em volta babando” […] estes e outros exemplos, descontada a gaiatice universitária, retratam o grau de alienação de parcela dos jovens privilegiados com acesso a curso superior. […].


V

As associações ou fac et spera


Ano passado, pesquisando na Biblioteca Central da Ufes, encontrei, dentro de um exemplar de monografia para bacharelado apresentada no curso de História, seis folhas datilografadas com anotações manuscritas a caneta vermelha sobre associações de Vitória, inclusive com indicações para estudo de muitos dos seus estatutos. Os nomes da monografia e do seu autor não interessam aqui, já que as anotações (em parte reproduzidas abaixo) não possuem, com toda certeza, um vínculo direto com o referido ensaio monográfico. Ditas anotações serão o esboço de uma outra pesquisa? Rascunho de trabalho acadêmico de um colega autor da monografia, comentadas por professor-orientador comum e esquecidas dentro do exemplar, entregue depois à biblioteca? Um projeto de dissertação que ficou pelo caminho?

“Coloca-se em discussão se estas entidades podem ser consideradas como integrantes de movimentos sociais em Vitória. A resposta é positiva, a priori. Apesar do pequeno número de associados ou interessados o seu peso na sociedade local enquanto elite econômica ou cultural foi e é muito grande. Tais associações repercutem na comunidade seus ideais estatutários e, em alguns casos, influenciam o conjunto da organização social, pelo menos a camada rotulada de classe média. Na Bíblia existe a conclamação para que ‘Não sejais nem muito ricos nem muito pobres’ — capítulo tal, versículo tal — foi este Livro escrito pela classe média de então, se assim podemos falar, ou é sabedoria mesmo? […].

A dificuldade de classificar a inserção de alguns movimentos sociais na vida da cidade. […].

O Instituto Brasil-Estados Unidos de Vitória — Ibeuv — a moda de teenagers irem para os States e voltarem ditando novos usos e costumes. […] massa boa para modelar. […].

O Fotoclube do Espírito Santo — Magid Saade — Francisco Quintas Júnior.

A Sociedade Filatélica do Espírito Santo — em certa época incentivada por mister Charles Ekker, cônsul americano em Vitória e que fez a guerra da Coréia. […].

A Sociedade de Cultura Artística de Vitória — SCAV — D. Edith Bulhões trouxe até nós (ainda em boa forma) a mímica de Marcel Marceau, o balé de Tatiana Lescova, orquestras tocando o Concerto nº 1 para Piano e Orquestra de Rachmaninoff ou Tchaikovsky (ver nos jornais e em programas da época) com ela ao piano e, mais recentemente, a Banda da Polícia Militar executando a Fantasia Triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro de Louis Moreau Gottschalk também com ela ao piano. […].

A Academia Espírito-santense de Letras — AESL — […] Uma de suas cadeiras tem como patrono o poeta Moacyr de Moraes, cachoeirense que morreu no Pará aos 33 anos de febre maligna. Quereis ser esquecidos ou vilipendiados? Entrai para a Academia. […] Contava-se entre os latinistas de Vitória o seguinte caso: quando era pronunciada em latim a divisa jesuítica Fac et Spera (Trabalha e Confia) os alunos gozadores ou pessoas do povo traduziam com “a faca te espera”. […].

O Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo — IHGES — fundado em 1916 não é a mais antiga associação cultural atuante em Vitória, primazia que cabe à Santa Casa de Misericórdia (fundada em 1545). Fazer caridade também é cultura. Aceitam-se protestos, réplicas e tréplicas. O IHGES foi fundado sob a égide do culto a Domingos José Martins. […] Devem ser registradas brincadeiras como esta: ao ser arcabuzado (morto por arcabuz, espingarda de boca grande) em Salvador o herói descobre o peito e grita: ‘Ide dizer ao vosso sultão que morro pela liber…’ (descarga da arma). Nunca se soube direito se o que ele queria dizer era ‘morro pela liberdade’ ou ‘morro pela Libertina’, uma amante sua. O nome do herói batizando um município que não tem nada a ver com ele (por que a fabricação do herói naquele começo de república?). Nas armas do Estado a data de 23.05.1535 (colonização do solo espírito-santense) foi mantida, mas a de 02.05.1892 (segunda constituição estadual, de uma série) foi trocada para 12.07.1817 (data do arcabuzamento, mais estável que as constituições estaduais).

A Associação Espírito-santense de Imprensa — AEI — de grandes e profícuas lutas em benefício da imprensa e sua liberdade, pressuposto de uma imprensa digna deste nome. Se para muitos o paraíso é feito de jornal (‘chato é morrer, não por nada não, é porque no dia seguinte não vou poder ler jornal’) o paraíso do jornal capixaba é a AEI. […].

O Rotary Clube — almoços, festas, reuniões, parte da história do colunismo social em Vitória, as campanhas contra a poliomielite (verbi gratia) somando as vontades das pessoas, não só ensinando como dançar ou vestir uma roupa de baile ou comer galinha com garfo e faca sem segurar o osso, mas sobretudo ‘Dar de si sem pensar em si’ (observação: esta frase entre aspas constava da anotação manuscrita em vermelho). Estranhas certas denominações: Rotary Clube de Vitória-Oeste. Pesquisar se os americanos incentivaram sua proliferação para se sentirem em casa no mundo e no Espírito Santo. ‘O regime nazista proibiu o Rotary’ (idem da observação acima). Contar história e histórias: quem foi o primeiro rotariano de Vitória? […] Quais eram os rotarianos a latere? […].

O Lions e as domadoras. ‘Está para o Rotary como a Pepsi para a Coca-Cola’ (idem da observação acima). […].”


VI

Os movimentos comunitários ou honi soit que mal y pense


Um advogado aposentado e que se intitula “um curioso de fatos, pessoas e coisas de Vitória” pesquisou os movimentos comunitários em nossa cidade e está para publicar livro sobre o tema com apoio de deputado estadual e empresa multinacional sediada em território capixaba. O autor me franqueou os originais para dar uma olhada faz poucos meses. Abaixo cito parte de um comentário crítico sobre a obra e que deverá constar de sua orelha. A referida obra terá como título e subtítulo, se não me engano, Vaidade das Vaidades — Das associações de moradores às comunidades eclesiais de base.

“O livro tem por base pesquisas em arquivos particulares, em jornalzinhos de bairro e mesmo em propagandas de políticos, aparecidas em época eleitoral, e transcreve depoimentos de pessoas lutadoras pelos interesses locais e documentos de associações comunitárias. São transcritas falações em reuniões de associações de bairro e feitas reconstituições de festas comunitárias (típicas ou não). […] Em destaque estão a Associação de Moradores da Ilha de Santa Maria e Monte Belo e a Associação de Moradores da Praia do Canto. Escreve sobre os fatores do aparecimento destas associações. Enumera as escolas de samba e blocos carnavalescos, de ontem e de hoje, como Chapéu de Lado, Mocidade da Praia, Unidos de Jucutuquara e muitos outros, enfatizando a movimentação que propiciavam na ilha, inclusive cooperando com a mobilidade entre as classes sociais. Aborda a questão do Asilo dos Velhos — desgraça e/ou orgulho para a cidade. Menciona a fala de antigos vitorienses, como esta: ‘Quando eu for pra Santo Antônio…’ significando ‘Quando eu morrer…’. Tece considerações sobre os Alcoólicos Anônimos — AA. Cita o chiste: ‘É preferível ser um bêbado conhecido do que um alcoólatra anônimo’ […] e enfatizada na seguinte frase: ‘Tatagiba e eu nas reuniões do AA só por auê’. Historia as iniciativas locais e suas ligações com iniciativas semelhantes a nível nacional e internacional, parte do estudo que o próprio autor considerou incompleta. Fala sobre a formação das comunidades eclesiais de base em Vitória, com bastante propriedade.”


VII


Os outros todos ou et coetera ou sursum corda


Na Seção de Obras Raras da Biblioteca Pública Estadual foram localizadas quatro pastas com recortes de jornais de Vitória e alguns do Rio de Janeiro contendo notícias da cidade referentes às décadas de 30 a 60. Como trabalho com esse tipo de documentação faz alguns anos, fui chamado para ajudar na identificação do possível proprietário da pasta entre os inúmeros doadores de acervo bibliográfico (viúvas de intelectuais incluídas) para aquela instituição cultural. A referida identificação ainda está se procedendo, mas já existem alguns nomes como mais prováveis de terem organizado a coleção. Selecionei notícias e artigos de fundo sobre temas ligados de alguma forma a movimentos sociais na capital capixaba. Quase todos os recortes têm colados pedaços de papel com anotações da época que aqui são citadas entre parênteses.

— Folha Capixaba — jornal do Partido Comunista Brasileiro — Seção do Espírito Santo — (Editado com muito sacrifício. Alguns comunistas de Vitória são conhecidos e até respeitados pelos “inimigos burgueses” mas só aqueles considerados idealistas, sempre remediados e que se sacrificavam pela causa, diferentes dos “comunistas de boutique” ridicularizados e não levados a sério, até mesmo por seus companheiros.)

— O 13 de fevereiro de 1930 — (Aliança Nacional Libertadora [sic] em Vitória — “China morreu urubu comeu”).

— Apresentação de Gabriela Mistral — (Prêmio Nobel de Literatura) — no Cine-teatro Glória. (“Recordar é reviver, reumanizar o tempo” — a poetisa foi ouvida de pé pela platéia extasiada).

— Os comícios — séries de recortes com notícias de comícios desde a década de 30 até a de 60 que mostram com nitidez as mudanças quantitativas e qualitativas ocorridas nesse fenômeno social.

— A população negra — (Aos negros foi negado acesso às terras, patrimônio maior na época da abolição e ainda hoje. Ao contrário dos brancos imigrantes, vindos com sua cultura e família intactas. Os carcomidos do império tinham a ilusão e preconceito de “melhorar a raça”. Também pudera! D. Pedro II se correspondia com Gobineau, aquele racista francês). — (De miserável no campo a miserável na cidade: agora a população negra sendo maioria nas favelas de Vitória). — (Chiquinho nos anos 50 ganhou muitos votos tomando cafezinho com os favelados).

— O rádio em Vitória — (Depois do rádio e dos programas de auditório, a vida na cidade muda muito).

— O clube para manutenção da antena repetidora de televisão em Vitória — (Por inspiração e interesse dos Diários e Emissoras Associadas).


VIII

As entranhas ou venturis ventis


Desconfio que a lembrança do meu nome para integrar este número dos Escritos de Vitória deveu-se à pequena participação que tive no movimento estudantil dos anos 60. Estudava no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, então na rua Marquês de Olinda, Botafogo. Na segunda série, em 1969, ano que também demora a terminar, fui expulso da Universidade por subversão, junto com dezenas de colegas e professores, enquadrados no decreto-lei 477, de triste fama. Não pertencia a partido político nem a facções guerrilheiras mas era um estudante que incomodava, falava nas salas de aula e em assembléias, e isto os dedos-duros de plantão não podiam admitir.

Cassado, voltei para Vitória e em 1971 fiz vestibular na Ufes para o curso de História. Continuei como franco-atirador. Já no terceiro ano sou novamente expulso da Universidade, agora sob o pretexto provinciano de que não tinha cumprido a pena pela “transgressão” anterior, que era de somente freqüentar qualquer instituição de ensino superior após decorridos três anos da expulsão. Talvez o pretexto não fosse tão provinciano assim porque aqui na Universidade também tinha uma atuação que incomodava alguns setores mais conservadores, como o de reerguer (junto com outros colegas) o Centro de Estudos Históricos, então a única entidade estudantil que voltou a funcionar no Centro de Estudos Gerais da Ufes.

Posteriormente, similis similibus curantur, acionaram-se pessoas ligadas à burocracia da ditadura para que ajudassem a desfazer o absurdo cometido. Fui reintegrado à Universidade e pude terminar o curso de História.

Em termos de movimentos sociais, dentre os processos que agora se devem evitar a todo custo em Vitória destacam-se:

a) as intolerâncias, especialmente as de fundo religioso. Tudo tolerar, menos a intolerância. Ou só admiti-la em pequena dose.

b) as elites estão abandonando seu compromisso com o que é público (saúde, educação, segurança) e se encastelando no isolamento de planos de saúde, escolas particulares e vigilância privada. Mas este retorno à “aristocracia esbodegada”, ao isolacionismo retrógrado, não se fará, sob pena de convulsão social. Do privado colonial e imperial para o público republicano e de novo para o privado globalizante? Não! Público e leigo ainda são conceitos a conquistar pelos movimentos sociais da cidade. É interessante observar que durante muitos anos os poucos anarquistas (existentes também em Vitória, por que não?) pregaram sozinhos contra a existência do Estado, e agora muita gente é a favor da diminuição do poder estatal. Lá na frente todos se encontrarão.

O que caracteriza os participantes de movimentos sociais é o amor e mesmo a paixão (às más ou às boas causas), deve-se afirmar sem medo de cair no ridículo. Como é importante não esquecermos, guardando as lições de antigos estudiosos da sociedade como Émile Durkheim, que a formação social nos antecede enquanto indivíduos e vai continuar existindo durante um bom tempo depois do nosso desaparecimento. Assim a escala humana só pode se entendida na reunião, assembléia, comunhão,ecclesia.

Antes do fim do planeta a vida humana tal como hoje a entendemos (com o sentimento do amor que só se realiza no social) poderá ser transmitida a outros mundos. Ella Fitzgerald ou Rachelle Ferell cantando “Bye Bye Blackbird” daria uma boa apresentação aos demais companheiros do universo. Mas não seria uma miçanga, ou um espelhinho. Sem contar que poderemos ser nós a receber miçangas e espelhinhos. E continuaremos a fazer política, única coisa que muda o mundo.

Até lá devemos seguir aprendendo com Vieira: no tempo dos antigos romanos existia o costume de sacrificar animais e predizer o futuro com o que era mostrado por suas entranhas. A analogia pode não ser correta mas o significado é justo. Consultem as entranhas dos sacrificados e o que elas disserem tomem por verdadeiro. Leiam o futuro no que vai por dentro dos sacrificados. Os que falam de sacrifícios ocorridos, mas nunca se sacrificaram; os que fingem sacrifícios, mas não se sacrificam; aqueles a exigir sacrifícios dos outros, mas que jamais se sacrificarão — nenhum destes serve. Consultem o que vai nas entranhas dos sacrificados, estudantes, religiosos, sindicalistas, líderes comunitários, representantes do povo, homens de vontade sã e boa, e outros, e outros — o sal da terra. O que nestas entranhas for encontrado considerem como a presença hoje do futuro. Muitas vezes o que agora é utopia risível, motivo de mofa e desprezo, amanhã será verdade, eis a chave da profecia.

Vida é sonho. Neste texto existem sonhos-ficção e sonhos-vida; existem discursos de quem não viu (palavras) e discursos de quem viu (profecias). Aviso aos que nele até aqui navegaram para abrirem os olhos e fazerem suas escolhas. Abr’olhos para os escolhos! Eis as chaves deste texto tipo ridendo castigat mores… academicos et burocraticos. Porque só a arte pode dar conta da vida. Declaro, para os distraídos, que este é um texto de ficção. Tudo isto escrevi de ouvido e orelhada. Todo este latinório. Como se daqui de dentro estas idéias dessem um supremum vale, um pela última vez adeus, para novas coisas acontecerem. Tudo isto tenho pensado e dito por aí. É isto aí: isto tudo tenho dito. Dixit.

Esc(ape)
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[Conto publicado originalmente em Escritos de Vitória — 16; Movimentos sociais. Vitória, PMV, 1996, p. 73-92.]

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Fernando Achiamé nasceu em Colatina, ES, em 22/02/1950 e fixou-se em Vitória a partir de 1955. Formado em história pela Universidade Federal do Espírito Santo e em língua e literatura francesas pela Universidade de Nancy II (Pela Aliança Francesa do Brasil). Especialista em arquivos pela Ufes. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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