Infância literária – alma de berço O alvorecer literário de uma província se assemelha ao despontar da vida humana, embalada pelos suav...

Ponciano dos Santos Stenzel (padre): prefácio da reedição Poema Mariano sobre a Penha do Espírito Santo

Infância literária – alma de berço


O alvorecer literário de uma província se assemelha ao despontar da vida humana, embalada pelos suaves sonhos de berço. Assim como o indivíduo e os povos também a literatura, retrato dos mesmos, tem em sua infância o balbuciar desconexo das primeiras palavras e a espontaneidade dos sorrisos do amor de mãe.

Não é de se estranhar que aqui no Espírito Santo a primeira manifestação de vida literária nascesse do assunto que então, como hoje, estava na alma do povo, a devoção à Senhora da Penha.

Ao contrário do que aconteceu em outras partes, o início nas letras aqui, com o Poema Mariano, tomou feição definida e cultural, porque o seu autor cursara humanidades com os jesuítas no Rio de Janeiro e, ao depois, fez parte provavelmente da sociedade dos “Esquecidos” ou dos “Renascidos”, tão florescente por aqueles tempos na Bahia.

A alma de berço, pois, não teve aqui início nos versinhos de pé quebrado, nas graciosas rimas populares, nos improvisos dos repentistas, que enquadra a alma popular nas tradições do “folk-lore”, mas começou com um poema, onde se nota perfeitamente o domínio do espírito da renascença com sua exuberância de humanismo próximo à decadência.

Diz Villemain que “a literatura é a expressão da sociedade”. Tal expressão, porém, quer em prosa, quer em verso, sempre reflete a vida privada e pública dos povos, suas tendências e dificuldades, seus [falta uma palavra no original] e superstições, em suma, o sentimento dominante da massa, a alma do século.

Portugal transplantou a crença para o Brasil, o missionário aprofundou-a, o jesuíta deu-lhe uma feição culta, nascendo assim as letras pátrias ao influxo salutar da Companhia de Jesus.

Não é sem fundamento que diz Constâncio Alves em seu Literatura na Bahia que — os jesuítas levavam adiante a sua tarefa de educadores beneméritos, em que cuidaram logo nos primeiros dias de sua chegada ao Brasil e que não há exagero em afirmar que a denominada “Escola Baiana” nasceu à sombra do colégio daqueles padres.

Dependendo a então Capitania do Espírito Santo eclesiasticamente da Bahia, e havendo grande intercâmbio político e cultural entre as duas capitanias limítrofes, não admira que viesse desabrochar em terra capixaba uma primorosa flor literária da escola baiana.

Não se pode afirmar que estes inícios literários se ressentissem de completa carência das leis estéticas que regem o mundo do belo. Se já Aristóteles dizia que a arte é o esplendor da verdade — splendor veritatis, devemos acrescentar que nem todas as verdades são esplendorosas. Há verdades bem duras, bem negras, onde se nota completa ausência de ideal. Assim como o mundo é um contraste de luzes e sombras e a vida um misto de lágrimas e risos, na poesia deve aparecer o bem e o mal, mas este tão somente por efeito de realce.

Assim como o berço tem luzes que o doiram, encantos que o embalam, sonhos que o embriagam, e amor que o acalenta, assim também a infância poética desta Capitania foi embalada pelas crenças populares da Penha, e pelo amor, nimbado de misticismo de enlevos na confiante proteção da soberana Senhora.

A literatura inicial tem, portanto, sua expressão própria, que se não possui uma feição definida, ressumbra, contudo, os sorrisos daquela pureza virginal, daquela frescura de vida, daquele hino saltitante como o regato entre flores, o cosmorama fugitivo que forma o encanto da alma de berço nas letras…

Quem o autor do poema


Eis uma dúvida, cuja solução pertence ao futuro desvendar. Quem é Domingos Caldas, o autor do nosso poema?… Será o P. Domingos Caldas Barbosa, literato assaz conhecido, ou será algum outro escritor?

Mesmo sobre o lugar de nascimento do próprio P. Domingos Caldas Barbosa pairam dúvidas, dizendo uns que ele nasceu na Bahia, outros que no Rio de Janeiro, outros, enfim, que nasceu no mar quando os pais vinham em viagem para o Rio.

A Enciclopédia Internacional marca a época do nascimento do P. Caldas Barbosa em 1738 e sua morte em 1800. Afirma igualmente Sílvio Romero a morte do P. Caldas em 1800 a 9 de novembro (Hist. da Lit. 263).

Quanto ao lugar, achamos mais provável a opinião que dá o nascimento de Caldas Barbosa no mar. O considerá-lo Sílvio Romero como do Rio de Janeiro e a maior parte de outros biógrafos como da Bahia, é fácil de se explicar. Seus pais moravam na Bahia e por isso o filho, nascido a bordo, era considerado baiano. Chegado ao Rio, é natural que o menino fosse batizado naquela cidade e instruído, nas primeiras letras, no Colégio dos jesuítas, eis porque outros o consideram como do Rio. Parece que mais tarde Domingos Caldas tornou à Bahia.

No seu Dicionário bibliográfico, à página 198, diz Blake: “Domingos Caldas Barbosa, padre, poeta, satírico e repentista, filho de um português e de uma africana, nasceu na Cidade do Rio de Janeiro, segundo informações de parentes seus e do Cônego Januário da Cunha Barbosa, ou a bordo de um navio em viagem para o Rio de Janeiro, onde foi solenemente batizado em 1738, segundo o Visconde de Porto Seguro e outros; ou na Bahia, como diz o autor dos Varões Ilustres [do Brasil] e o P. Inácio Félix de Alvarenga Sales por ‘lho afirmarem pessoas de grande crédito’, e faleceu em Lisboa a 9 de novembro de 1800.”

Todas as aparências me inclinam também a afirmar com Afonso Cláudio que o autor do Poema Mariano é o mesmo do Viola de Lereno.

Uma coisa, porém, me surpreende, e é que um homem, de cujo valor literário se não pode duvidar, como é o autor da História da Literatura Espírito-Santense, afirme, à página 40 de sua obra, que “Antes da chegada do vate baiano, padre Domingos Caldas, à Vitória, ninguém havia iniciado o cultivo das letras”… Todos os biógrafos são unânimes em afirmar que Domingos Caldas Barbosa, sem ser padre ainda, saiu do Rio de Janeiro para servir como militar na Colônia do Sacramento e, sendo esta tomada pelos espanhóis em 1762, ele seguiu para Portugal no mesmo ano. A princípio viveu na casa do regedor José de Vasconcelos e Souza, mais tarde Conde de Pombeiro, que era irmão do Conde de Castel Melhor, vice-rei do Brasil.

Se Domingos Caldas seguiu para Portugal em 1762, recebendo lá as sagradas ordens de presbítero e nunca mais voltou ao Brasil, como é possível que em 1770, época em que foi escrito o poema, se achasse em Vitória do Espírito Santo, como o supõe Afonso Cláudio?…

Eu também acredito que tenha sido o P. Caldas Barbosa o autor do Poema Mariano, dados os fartos conhecimentos históricos, mitológicos e mesmo a precisão dogmática nos assuntos religiosos, que indicam não só ser de um padre, mas de um padre muito culto. A suposição de Afonso Cláudio cria embaraços indissolúveis, pelo que, acho mais óbvio, na falta de outros documentos, admitir-se que algum amigo aqui da Capitania mandasse pedir em Portugal ao P. Caldas um Poema sobre a Virgem da Penha, que naturalmente ele devia muito bem conhecer, pois quando daqui saiu tinha já mais de vinte anos de idade, assim que podia conservar as particularidades a respeito da Penha e mesmo ter conhecimento dos principais acontecimentos.

O mesmo Afonso Cláudio acha-se embaraçado para solucionar esta dificuldade, em outra parte de sua obra, porque supõe que o poema, dadas as particularidades descritivas, fosse escrito por pessoa que devesse estar presente na Capitania porque conhecia muitos pormenores sobre a Penha. Acho, pois, que esta suposição é menos viável do que a outra. O autor do poema não conhecia tantos pormenores da história do Santuário da Penha. Da figura empolgante do abnegado ermitão Pedro de Palácios, ele nem fala. Quantas pessoas há que, muitos anos depois, guardam ainda bem nitidamente na memória tudo o que viram uma só vez na vida. Caldas tendo estado muitas vezes na Penha podia ter bem gravado as particularidades do poema, mesmo em apontamentos, pois era homem de letras que foi até recebido como sócio da Arcádia de Roma e, mais tarde, organizador da nova Arcádia da Academia de Belas Artes em Lisboa.

Graças à devoção ardente de muitas pessoas que colecionam tudo que se refere à Penha, devemos o ter-se conservado o poema em manuscritos pelo espaço de oitenta e quatro anos, pois tendo sido escrito em 1770, só em 1854 é que foi editado pela primeira vez.

Pode muito bem ser que o Poema Mariano fosse até recitado em alguma das popularíssimas festas da Penha pelos anos de 1770 e seguintes. Acho muito provável a hipótese de que algum festeiro da Penha, conhecedor do valor poético de Domingos Caldas, lhe mandasse pedir um poema sobre a Penha.

Seja como for. O certo é que o poema foi composto por Domingos Caldas em 1770, conhecedor das tradições e prodígios da Penha que andavam, por aqueles tempos, na boca de todo mundo…

Valor literário do poema


O poeta na verdadeira significação da palavra é o maior homem do mundo. Alma que tem eco para todas as ressonâncias da vida, cisne do ideal ele se alcandora às alturas vertiginosas, onde o comum dos homens não chega, não o compreende ou até o chama de imaginação desregrada. O verdadeiro poeta é sempre um gênio, aliás não passará de versejador.

Já dizia Goethe que na poesia deve a mão do gênio ser conduzida pela regra da arte.

O Poema Mariano é realmente uma obra de valor literário e que, apesar de não ser trabalho de fôlego, não obstante encerra em si verdadeiras jóias de fino lavor.

Em cento e vinte e seis estrofes, em oitavas de versos decassílabos rimados, descreve-nos o poeta os principais acontecimentos do histórico e milagroso Santuário de Nossa Senhora da Penha.

O Poema Mariano representa, sem dúvida, o primeiro tentame literário no Espírito Santo. Sobre seu valor diz a pena insuspeita de Afonso Cláudio: “A par da preocupação que domina o autor — a celebração mística das prodigiosas virtudes da Senhora da Penha — há nos seus versos, ora descrições pinturescas apreciáveis pela correção, ora trechos agradáveis pelas emoções que reproduzem, ora certo humanismo benfazejo que contrasta com a afetação tão usual na poética do tempo.”

A disposição artística dos versos, a facilidade de recursos históricos e mitológicos revelam uma pena acostumada ao cultivo das letras.

Para tornar sua leitura de mais fácil compreensão ao povo, achei conveniente dividir o poema conforme a disposição do assunto. Os títulos, portanto, não são do original.

Há uma coisa que foi criticada no Poema Mariano, aliás com razão: é o excesso de mitologia. Idéias do paganismo não deviam ser tão frequentemente aproveitadas como motivos religiosos a um poema genuinamente cristão e religioso…

Este defeito da obra, porém, deve ser atribuído ao espírito dominante na corrente literária do tempo. Como sabemos em 1770, época em que foi escrito o poema, ainda estávamos debaixo do influxo da renascença, com o servilismo aos modelos greco-romanos. O mesmo defeito da época vemos em Os Lusíadas de Luís Vaz de Camões, onde porém, o mal não sobressai tanto por se tratar de um poema épico e não religioso como o presente.

Esperamos que o Poema Mariano, digno de todo apreço já por tratar de tão elevado assunto, ganhe cada vez maior popularidade, e que, trazendo ao povo capixaba a memória de suas seculares tradições religiosas para com a Santíssima Virgem, cimente, cada vez mais, a união de seus filhos que, em todas as quadras difíceis de sua vida histórica, tiveram a dita de encontrar no alto da Penha uma Mãe protetora a quem podiam volver os olhos súplices e implorar d’Ela amparo neste vale de lágrimas.


[Prefácio da reedição do poema, com o título Poema Mariano sobre a Penha do Espírito Santo, Vitória, 1934.]


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Padre Ponciano dos Santos Stenzel, autor deste Prefácio, nasceu em Conceição do Arroio, atualmente Osório (RS), no dia 30 de julho de 1902, cursou o Seminário Provincial do Rio Grande do Sul, em São Leopoldo e, após ordenar-se, foi professor de filosofia do Instituto Rio-Grandense de Letras e fiscal do ensino secundário. Foi um dos sete padres integrantes da Câmara dos Quatrocentos da Ação Integralista Brasileira (AIB), transferindo-se para Vitória, ES, onde iniciou carreira política em 1934, como vereador pela AIB. Exerceu vários cargos: em 1947 foi eleito novamente como vereador às câmaras municipais de Cachoeiro do Itapemirim e de Vitória; em outubro de 1950 foi eleito deputado federal pelo Espírito Santo na legenda da Coligação Democrática formada pelo Partido Social Progressista (PSP), o Partido Republicano (PR), o Partido Rural Trabalhista (PRT) e o Partido de Representação Popular (PRP), assumindo sua cadeira na Câmara em fevereiro do ano seguinte; em 1954 reelegeu-se deputado federal pelo Espírito Santo ainda na legenda da Coligação Democrática, que agora reunia o PRP, o PSP, o PR e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB); em 1958 concorreu a uma vaga no Senado Federal pelo PRP, mas não conseguiu eleger-se e deixou a Câmara dos Deputados em janeiro de 1959, ao final do mandato. A partir de 1962 abandonou a carreira política, dedicando-se ao estudo da psicologia e ao sacerdócio, no subúrbio carioca da Piedade. Faleceu no Rio de Janeiro em 14 de novembro de 1987. Publicou Arte e civismo, Florilégio, Psicologia, Empírica, Pindarassu e A grande luz das palmeiras.

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