Pelo desejo de estar magnificamente só sentado neste banco de mim sobre meu eu que está fluindo lentamente no jardim e debaixo de mim ...

Poema “Eternidade-jardim ou o poema-Moscoso”

11/23/2015 , , 0 Comentários


Pelo desejo de estar magnificamente só
sentado neste banco de mim
sobre meu eu que está fluindo
lentamente no jardim
e debaixo de mim
fluindo
porém com um fluxo que não anda em linha reta
mas que gosta de fazer arabescos
redemoinhos de que moinho
ou dos carrosséis e dos coretos que aqui estão
diante do meu olhar redondo;
pode ser o moinho do meu eu
moendo este jardim-medalhão em reflexo pelo
mundo
o moinho místico — quem sabe — que não seria o do meu eu
mas o de uma divindade que toma conta da vida-morte
dos marrecos, dos macacos e dos humanos
e os mói
assim como se isto, este jardim fechado, fosse uma
espécie de purgatório
antes da solução final.

Homens idosos, ou meio maduros — anciãos — e
extremamente: crianças pequenas — extremamente,
com alguns adultos pingando das suas preocupações
o desligamento geral da criança-velha, do vovô-
neném
congelado debaixo das árvores
(que levantam suas mãos de ramos na direção de
um céu que corre em linha reta para os morros)
e todo mundo formando uma espécie de ciranda
nas construções circulares: que tocas!
onde os homens fluindo nos seus anos idos
jogam o baralho do destino
o baralho da vida-morte de que roleta russa
ou pode ser aquela roleta da entrada
do jardim
com seu guarda: João Pedro Joaquim.

E os macacos, estabelecidos na plena simetria
em relação ao homem, na sua toca-coreto
com a seriedade brincalhona de quem desconhece
a metafísica e os baralhos do Destino,
catam quase cientificamente as pulgas na superfície
da sua pele cabeluda
olhando com uma certa surpresa tranqüila para
mim
ou para minha consciência
que anda sempre com o “conceito da angústia”
debaixo do braço
e um jogo de baralho no bolso como loteria
metafísica na bunda do Destino.

E o fluir imperial dos marrecos acenando para
nós com seus traseiros felizes
e buzinando por pura felicidade de ser marreco
e o homem só, debaixo do velho relógio desgastado, sem
ponteiros para indicar a hora — hora parada — hora
perdida, o homem só, mexendo nos seus papéis, poemas,
documentos, testamento,
o homem meio velho e só que tenta segurar sua vida
fluindo nessa papelada toda
debaixo do relógio parado sem ponteiros
mas que eternidade é essa, onde tudo flui fora
o tempo parado?
que eternidade é essa que faz com que os macacos e os marrecos
pareçam olhar o homem com ar gozador, mandando-o,
esse homem, de volta para sua consciência
de sutil crueldade,
Relógio aposentado, como esse jardim em geral,
um pouco cansado de já ter vivido suas horas
de glória
e que vive do seu passado entretanto recente e
já ido
como a cidade toda que não sabe envelhecer
com aquele brilho meio fosco, essa pátina característica
do que já passou
e que se reflete nas máquinas fotográficas à antiga
como garças de um olho só
a consciência de qual câmara escura,
relâmpago mole de uma consciência cansada de ser
consciência,
o Relógio, primo irmão de uma balança de pesar
o peso de que corpo
a meio caminho no declive desse montículo
no jardim
das oliveiras ausentes
da reza impossível e do amor falido
das mangueiras presentes imensamente como notável
expansão tropicalista
a força das seivas e o peso do corpo velho
ou de um corpo que vai sumir
em que espaço intocável e predileto
que é aquele, pode ser, onde se jogará baralho até
o fim dos tempos
ao pé de um relógio parado
e diante de uma eternidade raspada
que não quer dizer nada.

Entretanto, aquele senhor de cabelo branco grisalho
paquerando aquela mulher “jovem ainda”, de
corpo esguio e levemente ossudo
mas com uma leveza que pode ser tocada sem sentir
o peso
do tempo
do relógio parado e da sua eternidade besta
o último namoro
a última paquera
e as árvores levantando as mãos para o céu, meu deus,
como lavadeiras que se exasperam nas suas fofocas,
e é para todo mundo descer de novo e dançar a ciranda
de um novo mundo
que foi sonhado no tempo em que o homem ainda sonhava
mas que não existe
mas que expande o notável perfume da sua
inexistência
na elegância natural
dessa mulher aparentemente simples
que o homem respira, não como uma flor, mas
como o cheiro incompreensível
do estar-aqui.

[Transcrito de Escritos de Vitória: Parque Moscoso, volume 6, Prefeitura Municipal de Vitória, 1994.]

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Gilbert Chaudanne é artista plástico e escritor. (Para obter mais informações sobre o autor e outros textos de sua autoria publicados neste site, clique aqui)

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